Garantir a saúde mental desde o berço
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma em cada cinco crianças poderá vir a desenvolver uma doença mental. No entanto, e esta é a realidade que mais preocupa Margarida Crujo, Coordenadora de Pedopsiquiatria no Hospital CUF Descobertas, uma percentagem destas crianças nunca será diagnosticada ou acompanhada.
A atenção ao bem-estar psicológico deve começar na infância, o mais cedo possível, uma vez que patologias como a depressão ou a ansiedade podem aparecer logo nos primeiros anos de vida. “Pensamos em tristeza quando pensamos em depressão, mas muitas vezes as crianças não estão tristes. Podem, sim, ao invés, manifestar irritabilidade. Por isso, este tipo de diagnósticos acaba por surpreender alguns pais. Mas a verdade é que até os bebés se deprimem”, explica Margarida Crujo.
As causas podem ser as mais diversas, mas, quando a depressão surge nos primeiros meses, advém geralmente de questões relacionadas com a vinculação e a disponibilidade afetiva. “Não tendo outra referência, um bebé que nasça numa família em que a mãe esteja deprimida pode deprimir-se. É um bebé que parece estar alheado e não quer conhecer o mundo, embora tenha capacidade para isso. Não está interessado no que o rodeia. Deixa de comer ou tem alterações nos padrões de sono.” Para esta especialista, se os pais ficarem preocupados com algum aspeto do desenvolvimento do filho, isso é motivo suficiente para recorrerem a uma consulta de Pedopsiquiatria. “A nossa consulta não serve apenas para fazer o diagnóstico de uma patologia. Muitas vezes, o que fazemos é assegurar que está tudo bem até determinado momento. Ou seja, as consultas também podem servir apenas para transmitir segurança aos pais”, explica a responsável.
Tratando-se de uma consulta generalista, a Pedopsiquiatria abrange o acompanhamento de uma panóplia alargada de doenças que vão desde as perturbações do comportamento a casos de hiperatividade e défice de atenção, passando por patologias do humor, doenças do foro alimentar (como a anorexia ou a bulimia nervosa) ou alterações do controlo dos esfíncteres.
O facto de a saúde mental das crianças merecer hoje uma maior atenção do que, por exemplo, há três décadas, não é necessariamente resultado de um crescimento efetivo de casos na população infantil. “O que sabemos é que há condicionantes na vida das pessoas que podem favorecer mais a doença mental, ao mesmo tempo que há um aumento da visibilidade em torno da mesma”, afirma a médica. Os estilos de vida atuais integram tipicamente aspetos que podem ser fatores de risco para a doença mental. “As crianças têm menos contacto com o ar livre e passam menos tempo com a família nuclear. Há elementos do nosso estilo de vida que podem condicionar o aparecimento de doenças mentais na população mais vulnerável.”
Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção
A Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) é uma das patologias mentais associadas à infância que tem recebido mais atenção mediática nos últimos anos. É, por isso, uma das mais conhecidas e diagnosticadas. Trata-se de uma doença cujos sintomas são atenuados com recurso a fármacos. Ao contrário do que é crença comum, a PHDA é crónica. “O que se espera é que, com o tempo, a pessoa ganhe mecanismos para poder controlar melhor os sintomas”, diz Margarida Crujo. Assim, se a criança é acompanhada clinicamente, quando chega à idade adulta, nalguns casos pode existir a possibilidade de ter de continuar a ser seguida por um psiquiatra de adultos ou por um neurologista. “A transição depende de quão afetada é a funcionalidade de cada um. Há muitas pessoas que não foram diagnosticadas e que têm um funcionamento dito proveitoso, embora nunca tenham feito tratamento”. As pessoas com PHDA tipicamente fazem muita coisa ao mesmo tempo, mas tendem a não terminar as tarefas”. Do ponto de vista físico, a médica acrescenta que tendem a ser pessoas mais “desastradas”,que tropeçam com maior regularidade e são mais propensas a acidentes ou a incorrer em comportamentos de risco.
A propósito desta maior propensão para comportamentos de risco, como o consumo de álcool e drogas, um estudo realizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em julho de 2021, revelou que, durante o período pandémico, 20% dos inquiridos entre os 15 e os 20 anos admitiram um aumento do consumo de álcool e tabaco, enquanto 11% se iniciaram nos fármacos psicotrópicos. Os problemas de dependência tendem a ser mais frequentes na adolescência e início da idade adulta do que na infância, mas, seja qual for o caso, é importante a abordagem psicoterapêutica, de modo a identificar o que conduziu ao comportamento de risco. “Muitas vezes, a dependência está associada a algumas lacunas emocionais. A droga – como, noutras situações, acontece com a comida – acaba por equivaler ao ‘tapar’ desse buraco emocional”, explica a Pedopsiquiatra. No tratamento da dependência pode ainda haver recurso à abordagem farmacológica ou à intervenção em grupoterapia. “É algo a que os jovens geralmente aderem bem.”
Tal como nas restantes questões abordadas nas consultas de Pedopsiquiatria, também aqui existe o envolvimento da família. “Partimos do princípio de que, para mudar as situações de saúde mental, é preciso olhar para o contexto em que a criança se insere. E o contexto mais frequente é a família. Uma das modalidades de intervenção que temos na CUF é a chamada consulta terapêutica, em que também há uma componente de intervenção familiar”, afirma Margarida Crujo.
Por sua vez, são igualmente envolvidas outras especialidades, nomeadamente a Pediatria. “O tratamento na CUF distingue-se pelas parcerias que se estabelecem com outras especialidades”, refere Luís Madeira, Coordenador de Psiquiatra no Hospital CUF Descobertas. “Além disso, dispomos de uma consulta de Psicologia e de Psiquiatria especializadas na adolescência e está prevista a criação, a curto prazo, de grupos para pais e de grupos psicoterapêuticos para adolescentes.”
A adolescência é marcada por uma série de mudanças das mais variadas ordens – desde a menarca ao primeiro amor, passando pela entrada na universidade – que não só exigem capacidade de adaptação como podem funcionar como fatores de stresse, por vezes associados a sofrimento psicológico ou surgimento de doença mental. Além do mais, é entre os 18 e os 25 anos que muitas vezes ocorrem os primeiros episódios de doenças psiquiátricas graves. Estes são, por isso, “anos valiosos para o diagnóstico e a intervenção precoces que podem alterar drasticamente o prognóstico de uma doença”.
Um diagnóstico de doença mental na adolescência não determina, contudo, que esta se continue a manifestar na idade adulta. “Existe uma enorme plasticidade na saúde mental em qualquer idade, sendo possível a recuperação total, quer sintomática, quer funcional, na maior
parte das intervenções psiquiátricas em crianças, jovens ou adultos”, assegura Luís Madeira. “É muito importante desmistificar esta questão. Tanto é assim que costumo dizer aos pais que é fundamental falarem com um técnico de saúde se existir sofrimento significativo, mas também que ir ao psiquiatra ou ao psicólogo na adolescência não deveria mudar a interação que os adultos e os seus pares têm para com o adolescente no resto da vida.”
Ainda assim, é fundamental que familiares, professores e amigos estejam atentos a sinais que possam indiciar perturbações do foro mental, como alterações do sono, do apetite, emagrecimento súbito ou expressão de sentimentos de tristeza inexplicáveis. A partilha de ideias de morte e os comportamentos autolesivos também devem, naturalmente, ser valorizados, já que implicam o recurso ao serviço de urgência.
Luís Madeira e Margarida Crujo acreditam que a pandemia deixou marcas na saúde mental das crianças e dos jovens. “Numa fase inicial, as famílias puderam usufruir de mais tempo em conjunto, pelo que é frequente os pais relatarem o tempo de qualidade que tiveram com os seus filhos e o facto de os terem ficado a conhecer melhor”, afirma Margarida Crujo. No entanto, esta aparente vantagem acabou por desaparecer. “Em 2019, a UNICEF considerava que um em cada sete jovens entre os 10 e os 19 anos tinha uma perturbação mental e Portugal estava em segundo lugar numa lista de 33 países (com uma prevalência estimada de 19,8%)”, lembra Luís Madeira. “A pandemia teve um especial impacto no desenvolvimento dos adolescentes e terá, sem qualquer dúvida, determinado um agravamento deste panorama.”
Fotografias de António Azevedo e Luís Filipe Catarino (4SEE)
As perturbações alimentares como a anorexia nervosa têm vindo a aumentar obrigando a um reforço da atenção da família para precaver consequências nefastas.
Anorexia nervosa, restritiva ou purgativa. Bulimia nervosa. Perturbação de ingestão compulsiva. Perturbação restritiva de evitamento. Estas são algumas das principais perturbações alimentares que afetam crianças e jovens e, como explica Dulce Bouça, psiquiatra no Hospital CUF Descobertas, por trás delas está muitas vezes o desconhecimento do próprio corpo e a dificuldade em identificar e lidar com emoções e modificações corporais.
Tendo em conta o início insidioso destas doenças, é importante que a família se mantenha atenta a sinais de alarme como restrição alimentar, contagem de calorias dos alimentos, pesagens recorrentes (que rapidamente passam a diárias) e o evitamento de refeições partilhadas. “Quando estes comportamentos se mantêm, deve procurar-se uma consulta tão brevemente quanto possível”, defende a especialista, que aproveita para alertar que estas condições afetam tanto rapazes como raparigas. Já no que toca a idades, a puberdade e a adolescência são os períodos mais críticos para o aparecimento destas patologias, que registaram um crescimento nos últimos dois anos, tanto em número de casos como em gravidade.
A CUF disponibiliza consultas multidisciplinares de doenças do comportamento alimentar para o acompanhamento destas crianças e jovens. “O diagnóstico é feito por suspeita de distúrbio alimentar, com avaliação médica do desenvolvimento e avaliação de experiência subjetiva da imagem corporal e do desconforto com o corpo, atendendo sempre às informações dadas pelos pais”, explica Dulce Bouça. “Havendo dúvidas, deve ser pedida uma avaliação por um pedopsiquiatra ou por um psiquiatra."