Endometriose na primeira pessoa

"Eu agora vivo, antes sobrevivia": A história de Nicole Filipe

Após 11 anos de sintomas que lhe tiravam qualidade de vida, Nicole foi diagnosticada com endometriose. Um percurso difícil mas com um final feliz.

 

A endometriose é uma doença crónica que não tem cura. Muitas vezes silenciosa, é uma doença que, na maioria dos casos, tem um profundo impacto na saúde das mulheres, quer a nível reprodutivo e sexual, quer na própria qualidade de vida. Esta doença consiste na presença do tecido que reveste o interior do útero (o endométrio) fora da sua localização habitual. “É um tecido que apesar de estar fora do seu sítio normal, vai comportar-se de forma semelhante ao que acontece dentro do útero. Pode implantar-se em órgãos como o intestino, bexiga, ovários, trompas e muitos outros. É um tecido que “sangra” durante as menstruações e que depois produz uma fibrose e nódulos que alteram a função normal dos órgãos afetados.”, explica Miguel Brito, ginecologista CUF.

 

Cerca de 350 mil mulheres em Portugal têm endometriose - ou seja, uma em cada dez mulheres em idade fértil. Estes são os resultados do estudo realizado pela Sociedade Portuguesa de Ginecologia, divulgado em março de 2023, que alerta ainda que uma percentagem superior a 40 % demora mais de dez anos a ser diagnosticada e a dor intensa é o principal sintoma, afetando 90 % das mulheres.



Os sintomas da endometriose

Nicole Filipe faz parte destas estatísticas. Esperou quase 11 anos para receber o diagnóstico correto, enquanto sofria de dores intensas, por vezes incapacitantes, e periodicamente atenuadas por fármacos. “A primeira vez que pedi ajuda foi à minha médica de família, pois não achava normais as dores intensas que tinha sempre que estava na primeira semana da menstruação. A médica relativizou todos os sintomas que eu apresentava e foi aí que tentei perceber o que é que se passava com o meu corpo, porque não achava normal.”

"Quanto mais avançada estiver a doença no seu diagnóstico, mais difícil depois será o seu tratamento e já maior o impacto da própria doença na vida dessa mulher."

Miguel Brito, ginecologista CUF

 

A experiência da endometriose é diferente para cada pessoa. As mulheres com endometriose podem ter alguns, todos ou nenhum desses sintomas e estes são frequentemente associados a outras condições, como cólicas menstruais ou síndrome pré-menstrual, o que dificulta o diagnóstico. A dor intensa durante a menstruação, as relações sexuais ou as evacuações são alguns dos sintomas mais comuns da endometriose. Atualmente, o tratamento centra-se, sobretudo, no controlo dos seus sintomas.
O especialista em endometriose confirma que “os sintomas da endometriose são, habitualmente, a dor e a infertilidade. A dor pode ocorrer durante o ciclo menstrual, mas também fora. Podem ser dores associadas às relações sexuais e até quando há alterações do trânsito intestinal. Mas sabemos que existem outros sintomas habitualmente associados à endometriose, nomeadamente o cansaço e ansiedade, muito sugestivos desta doença.” E acrescenta: “Estima-se que, desde o início dos primeiros sintomas até ao diagnóstico, possam decorrer de dez a 12 anos. É óbvio que, quanto mais avançada estiver a doença no seu diagnóstico, mais difícil depois será o seu tratamento e já maior o impacto da própria doença na vida dessa mulher."

O tratamento recomendado a Nicole Filipe pela médica de família foi apenas farmacológico, entre ibuprofeno e paracetamol, e várias mudanças de pílula. “A nível de melhoras, não posso dizer que não as tive, porque as dores diminuiam um pouco, mas não senti que fosse a solução de que eu precisava. Na última vez que fui à consulta com esta médica, disse-lhe que ia ao hospital e a resposta foi para não ir e queixar-me de dores menstruais porque parecia mal.” As dores continuaram e agravaram-se, mas não procurou mais ajuda, até porque essa frase da médica continuava a ecoar na sua cabeça.

“Sempre quis ser mãe e via-me quase travada a fundo com uma doença que andei cerca de 11 anos à procura e nunca tive suspeitas de nada. Era tudo sempre normal e de normal não tinha nada.”

Nicole Filipe, diagnosticada com endometriose

 

Endometriose: do diagnóstico ao tratamento

Mais de uma década após os primeiros sintomas e com as dores a agravarem-se, Nicole Filipe muda de residência e de médica de família. Esta, suspeitando, encaminha-a para o Hospital CUF Viseu, onde lhe é finalmente diagnosticada esta doença crónica. “Aí sim, numa primeira consulta, o Dr. Miguel Brito fez uma palpação e sentiu logo um nódulo. Confirmou-se o diagnóstico de endometriose”. Seguiram-se mais exames para perceber a extensão da doença, tendo sido diagnosticada a Nicole Filipe uma endometriose profunda, a qual afetava parte do intestino e da vagina, pelo que se teria de se proceder ao tratamento cirúrgico. “Aceitei logo a cirurgia. Era um aspeto que para mim era muito importante. Sempre quis ser mãe e via-me quase travada a fundo com uma doença que andei cerca de 11 anos à procura e nunca tive suspeitas de nada. Era tudo sempre normal e de normal não tinha nada.”

Foi assim traçado um plano operatório, que consistiria em remover parte do intestino e da vagina, ou seja, toda a doença de forma a restabelecer a função reprodutiva. “Foi este o motivo principal da cirurgia e, também, de certa maneira, com este tipo de cirurgia, restabelecer a fertilidade. Esta cirurgia não é só uma reparação da anatomia, mas deve ser sobretudo uma restituição da função. Ou seja, quando se faz uma intervenção cirúrgica, tem sempre um tratamento sintomático e o restabelecimento da função dos órgãos afetados”, explica Miguel Brito.

 

Como tratar a endometriose?

De acordo com Miguel Brito, “os tratamentos disponíveis são o médico e o cirúrgico. Hoje em dia está mais do que comprovado que existem terapêuticas complementares, como a alteração dos hábitos nutricionais e a própria acupuntura, que têm tido resultados muito bons em casos selecionados.”

 

Tratamento médico da endometriose

“O tratamento médico, habitualmente, recorre à terapêutica hormonal, analgésica e anti-inflamatória. Tem algumas limitações, mas, em alguns casos, é possível só com o tratamento médico o controlo da doença até ao fim da idade reprodutiva da mulher”, explica.

 

Tratamento cirúrgico da endometriose

“Recorre-se ao tratamento cirúrgico em casos selecionados: em que o tratamento médico não resultou ou que, já numa fase de diagnóstico avançado, haja uma alteração da função dos órgãos afetados. Por exemplo, uma mulher com uma endometriose profunda que afeta o intestino, de maneira que não consiga dejeções, a não ser uma vez em cada dez dias, ou seja, uma obstipação crónica gravíssima, tem indicação para tratamento cirúrgico. Mas o tratamento cirúrgico deve ser muito bem adequado e ser realizado por equipas muito experientes. E, sobretudo, há um aspeto que deve ser focado: o tratamento não deve ser escolhido pelo médico. O médico é um vetor do tratamento. Ou seja, é alguém que avalia muito bem o paciente, que o informa dos riscos e benefícios do tratamento, e só depois é que o paciente, em consciência e sabendo dos riscos do tratamento, pode escolher o seu”, salienta.

 

Endometriose e infertilidade

“A endometriose condiciona a fertilidade. Sabemos que o faz em 40 % das mulheres que têm endometriose. Isso explica-se facilmente se pensarmos que os órgãos mais afetados pela endometriose são os órgãos do aparelho reprodutor”, explica o especialista.

Talvez por isso, Nicole Filipe tenha perdido a esperança de engravidar naturalmente: “Custou receber o diagnóstico, mas eu finalmente tinha um diagnóstico.”

Por volta de 2019, foi-lhe diagnosticada uma depressão. “Na minha cabeça havia sempre algo que me ia retirar este sonho de ser mãe. Nunca pensei conseguir, quanto mais de forma natural. Mas o que é certo é que assim que eu deixei de tomar a pílula no pós-operatório por indicação do médico, cerca de dois meses depois, tinha um teste positivo na mão e esse, sim, era real.”

Do diagnóstico de endometriose em 2021, muito já se passou desde que Nicole Filipe veio à primeira consulta no Hospital CUF Viseu. “E estou agora aqui quase a ter um bebé. Agora posso dizer que sou uma pessoa totalmente diferente, uma pessoa que tem esperança e estou a viver a melhor fase da minha vida. Quero que o meu testemunho sirva para essas mulheres, essas raparigas, acreditarem e seguirem em frente. Acreditem no vosso corpo. Às vezes, por mais obstáculos que tenhamos à frente, nós conseguimos ultrapassá-los. Eu agora vivo, antes sobrevivia.”

“A endometriose condiciona a fertilidade. Sabemos que o faz em 40 % das mulheres que têm endometriose.”

Miguel Brito, ginecologista CUF

 

Causas da endometriose

Os especialistas não sabem exatamente o que causa a endometriose, mas existem algumas teorias sobre o que a pode desencadear:

  • Transporte através do sangue ou do sistema linfático: o tecido endometrial é transportado para outras áreas do corpo através do sangue ou do sistema linfático, à semelhança da forma como as células cancerígenas se podem espalhar pelo corpo;
  • Transplante direto: as células endometriais podem fixar-se nas paredes do abdómen ou noutras áreas do corpo após uma cirurgia, como uma cesariana ou uma histerectomia;
  • Genética: a endometriose parece estar mais presente nalgumas famílias do que noutras, pelo que pode haver uma ligação genética à doença;
  • Menstruação invertida: o tecido endometrial entra nas trompas de Falópio e no abdómen em vez de sair do organismo durante o período menstrual da mulher;
  • Transformação: outras células do corpo podem transformar-se em células endometriais e começar a crescer fora do revestimento do útero.

 

A endometriose no mundo

A Organização Mundial da Saúde refere que a endometriose afeta cerca de 10 % ou 190 milhões de mulheres e raparigas em idade reprodutiva em todo o mundo.

Esta doença crónica provoca dores intensas durante os períodos menstruais, as relações sexuais, os movimentos intestinais e a micção. Também provoca dor pélvica crónica, inchaço abdominal, náuseas, fadiga e, por vezes, depressão, ansiedade e infertilidade.

Atualmente, a endometriose não tem cura conhecida e o tratamento centra-se normalmente no controlo dos sintomas.

O diagnóstico precoce e o tratamento eficaz são fundamentais, mas o acesso a estes serviços é muitas vezes limitado, particularmente nos países de baixo e médio rendimento.

Uma maior sensibilização, seguida de um diagnóstico e tratamento precoces, pode retardar ou travar a progressão natural desta doença silenciosa mas que provoca muita dor. É assim importante que as mulheres estejam informadas sobre os sintomas da endometriose, para que possam procurar ajuda médica especializada o mais cedo possível.

“Quero que o meu testemunho sirva para essas mulheres, essas raparigas, acreditarem e seguirem em frente. Acreditem no vosso corpo. Às vezes, por mais obstáculos que tenhamos à frente, nós conseguimos ultrapassá-los. Eu agora vivo, antes sobrevivia.”

Nicole Filipe, diagnosticada com endometriose

Mãe e filha bebé
Unidade da Endometriose
Fontes

Sociedade Portuguesa de Ginecologia

OMS

John Hopkins Medicine

Associação Portuguesa de Mulheres com Endometriose

HealthNews

European Society of Human Reproduction and Embryology

ESHRE guideline: endometriosis